Ashtanga, Surf e a Grande Máquina de Fazer Salsicha
Antonio trabalha com jornalismo, é apaixonado por surf e tem se dedicado ao Ashtanga Vinyasa com afinco. Abaixo ele nos conta um pouquinho como hoje, prestes a completar 50 primaveras, simplesmente surfa melhor do que nunca.
"Aos 20 anos, tive uma forte crise de valores que me levou a procurar alguém que pudesse me instruir no caminho do Conhecimento. Tinha acabado de entrar na faculdade e estava relutando em entrar de peito aberto na Grande Máquina de Fazer Salsicha que era o mercado profissional.
A mão do destino me levou até um mestre de natação chamado Kanichi Sato que me iniciou no caminho da evolução constante e gradual da prática Zen. No Zen, trabalhar corpo, comportamento e o entendimento das coisas é uma coisa só. Não se separa corpo de espírito. Aliás, não se separa nada de nada.
O velho Sato – que instruiu natação no Clube Pinheiros por muitos anos e formou muitos campeões – sempre naquele sotaque japonês carregado, dizia todos os dias:
- Senhor da água, senhor do Eu.
A sua linguagem era poética e dava margem a muitas interpretações. Mas nós, que adorávamos as suas aulas, sempre entendíamos o que ele queria dizer.
Um dia, quando ele achou que eu já nadava o suficientemente bem, me chamou e disse:
- Antonio, piscina é gaiola e gaiola é prisão. Agora vai nadar em mar. Mar é liberdade.
Meu irmão já surfava e passei a pegar carona nas barcas que ele fazia para a praia todo o fim de semana. Algumas tentativas frustradas e, em pouco tempo, estava deslizando sobre as ondas. Minha vida mudou. O mundo intelectual e tacanho – que supervaloriza o estudo racional e despreza o corpo - que havia me emparedado na Faculdade estava desaparecendo e o contato com o Mar aberto me trazia uma nova percepção de mundo.
Os momentos mais inesquecíveis eram os finais das tardes de domingo, um pouco antes de termos de arrumar as coisas e voltar para a Matrix (São Paulo). Pendurados nas pranchas, vendo a tarde sumir e a noite chegar dentro do mar, nos agarrávamos em silêncio às nossas “bóias” (apelido das pranchas), aproveitando tudo o que o Mar podia nos dar até o último segundo do último minuto possível...
Sempre estávamos em 5 ou 6 garotos. Com a pouca luz que sobrava, eu via apenas a sombra de cada um deles dentro das águas. Ninguém falava. Mas a comunicação era profunda. De dentro dos nossos peitos exalava um profundo amor e respeito pelo Mar, pelo espaço aberto, pelo infinito.
Alguns anos se passaram, o velho Sato faleceu com mais de 90 anos. Eu resisti fora da Máquina de Fazer Salsicha até perto dos 30 anos. Depois disso, sucumbi aos pagamentos de contas, das intermináveis prestações de automóveis e laços sociais e profissionais. Consegui me manter na prática da ioga e no Caminho do Conhecimento, mas o surf se foi... as ondas... o mar aberto... os amigos... a prática do zen...
Mantive a prática da hatha ioga. Mas, sendo uma modalidade de ioga muito suave, não me colocava em forma física. Embora o relaxamento e a meditação sejam muito interessantes.
Aos 45, já estava gordo e fora de forma. Um dia peguei minha prancha e fui para o litoral. Decepção. Não consegui nem varar uma pequena arrebentação de um mar com ondas que não passavam de 1 metro de altura. Naquele dia, achei que realmente estava a caminho de ganhar meu diploma de salsicha. Uma salsicha trabalhadora, cheia de responsabilidades, mas ainda assim um embutido - enlatado de primeira.
Conversa aqui e ali e um amigo me indicou a prática da Ashtanga.
- Ideal para o surf, pegar forma, muito ativa! Foi o que ele disse...Bacana. Procurei a Escola Santosha Yoga Shala e passei a frequentar quase todo dia. Bingo! Zen, ioga, surf... agora dava para juntar tudo num pacote só! A Ashtanga, ao mesmo tempo que trazia forma física com a agilidade necessária para enfrentar grandes desafios físicos, me colocava em contato novamente com a prática de zen:
- Percepção do corpo, evolução contínua... Era a voz do meu velho mestre ecoando novamente em meus ouvidos.
Com algum tempo de prática começo a constatar que através da ashtanga é possível conhecer tudo o que os grandes mestres da índia descrevem em seus livros: o prana, os canais energéticos, o diafragma como “porta de entrada da vida”, entre outros conhecimentos fartamente descritos nos livros antigos. Até então, para mim, toda essa informação dos velhos manuscritos eram apenas histórias... Eu intuía haver verdade naqueles textos, mas não conhecia a prática correta para acessar aquele conhecimento perceptivo do corpo. A Ashtanga me deu isso!
Aos poucos, ganhei forma, elasticidade e velocidade nos movimentos. E, então, perto dos 50 anos, pude voltar a pegar ondas. Uma casa alugada com velhos amigos marítimos, uma prancha nova e “olha eu aqui outra vez”!!!
O mais interessante é que estou melhor que aos 25 anos (não que eu seja grande coisa... Apesar do meu esforço, nunca tive um grande talento para o surf, continuo o prego de sempre... rs).
Os suryas da ashtanga tem uma relação muito estreita com o surf. Dropar uma onda é fazer um surya. O movimento é igual. Além disso, o equilíbrio e a percepção que a ashtanga traz estão em perfeita sintonia com esse esporte. Não é a toa que grandes feras como Tom Curren e muitos outros adotaram a prática da ioga como preparo profissional.
Aliás, surf, ioga, zen, conhecimento e Hawaii sempre tiveram tudo a ver. Mas isso é história para outro dia. Aloha!"
Antonio José Canjani